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Estupro, torturas e abusos: indígenas guaranis relatam barbárie em meio a conflitos na divisa entre PR e MS

Ao GLOBO, mulheres relatam ter sido amarradas em ao menos dois episódios; grávidas contam que perderam seus bebês

Por Daniel Biasetto e Isa Morena Vista* — Rio de Janeiro

Mulheres indígenas relatam abusos sexuais e agressões em conflitos no Mato Grosso do Sul e Paraná — Foto: Renaud Philippe

Em meio a conflitos por disputa de terra que se arrastam por décadas, indígenas guarani kaiowá viveram cenas de terror nas mãos de pistoleiros no município de Iguatemi, em Mato Grosso do Sul, nos últimos oito anos. Relatos de violência física e sexual sofrida por mulheres — duas delas estavam grávidas —, feitos ao GLOBO, vêm à tona agora e revelam a atrocidade com que capangas de fazendeiros agem desde o acirramento da disputa pela posse na Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I.

Lideranças guarani kaiowá denunciaram às autoridades abusos sexuais de mulheres da etnia em ocasiões diferentes feitos por pistoleiros em Iguatemi entre 2016 e 2023. Os incidentes também foram registrados em relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que, somados, totalizam 23 queixas de violência sexual contra indígenas no país no ano passado. Dois desses relatos feitos à Polícia Federal, aos quais O GLOBO teve acesso, dão conta de uma série de abusos e torturas cometidos por supostos jagunços de proprietários de terra locais, em novembro de 2023. Antes delas, em setembro de 2016, Claudencia (nome fictício para preservar sua identidade) contou que estava grávida de oitos meses quando foi estuprada por pistoleiros em um das tentativas de retomada da TI Iguatemipeguá I.

De acordo com os relatos, o grupo já estava há seis dias dentro da ocupação quando foi surpreendidos por pistoleiros. Ela estava acompanhada de sua irmã caçula, que tinha 12 anos na época. Com a voz embargada, Claudencia contou à reportagem que homens mascarados tentaram estuprar sua irmã e ela que, ao tentar impedi-los para proteger a caçula, acabou por sofrer a violência.

Segundo a mulher, os pistoleiros também bateram forte em sua barriga com a ponta das armas que usavam. As agressões foram tão intensas que a fizeram perder o bebê que estava esperando.

— Eu não consegui correr porque minha barriga estava muito pesada, e por isso que me pegaram. Todos eles estavam de máscara e bateram em minha barriga três vezes com a ponta da arma. Eu chorei e a minha irmã caçula estava junto comigo. Eles queriam estuprar e daí para protegê-la, eu me deixei estuprar. Por isto me bateu antes, judiaram mesmo. "Agora vamos fazer à vontade", um deles falou. Aí eu segurei a minha irmã, segurei e puxei ela pelo braço do meu lado enquanto um dos homens a puxavam pelo outro braço. Aí falei para largarem ela, que era minha irmã caçula, para não fazerem aquilo, porque era uma criança e iam matá-la, e eu chorei muito nesse momento e assim me violentaram gritando pra nós "vamos matar todo mundo". Amarraram todo mundo, as crianças também, mas só bateram nelas. É isso que eu queria passar pra vocês. Eu quero que vocês mandem minha fala para suas autoridades, porque na época ficamos com medo de denunciar. Ninguém veio conversar com a gente. Nem autoridade lá em Brasília, nem nada — conta Claudencia.

'Uma perdeu o bebê, morreu dentro dela de tanta violência'

Em outro depoimento obtido pelo GLOBO, por meio de tradutores da língua kaiowá, mais relatos de abusos e violências, desta vez feitos à PF há oito meses e até hoje sem investigação, conforme documento que comprova a denúncia. Nele, a guarani kaiowá Anita (outro nome fictício), conta que se prontificou em novembro do ano passado a participar da retomada de parte da TI Iguatemipeguá I, quando foi alvo de pistoleiros da região, que a agrediram e a violentaram de diversas maneiras. Anita relata que foi amarrada, torturada e abusada sexualmente por pistoleiros.

— Eu fui violentada e agredida em dois momentos. Sofri o primeiro ataque em novembro do anox passado. Fui amarrada e torturada. Minha perna está machucada até hoje, não consigo mais andar direito. Fiquei em casa oito ou nove dias deitada, sem conseguir nem se levantar. Nós estávamos em quatro mulheres e um homem, ficamos todos machucados. Uma perdeu o bebê, morreu dentro dela de tanta violência. A outra teve hemorragia. São sempre as mesmas fazendas — afirmou sem dizer os nomes das propriedades.

Em seu depoimento à PF, afirma Anita, não se preocuparam em fazer muitas perguntas, mesmo com uma tradutora dando apoio. Anita cita ainda outro momento em que foi baelada no braço

Anita (Nome fictício) levou um tiro no braço após ataques de pistoleiros em Iguatemi (MS) 
— Foto: Renaud Philippe

— Ainda no dia 10 de abril deste ano, às 7 horas da manhã, veio aqui um pistoleiro. Ele veio pela estrada e entrou na minha casa, queria me agarrar, estava eu e minha filha. Eu estava lavando a roupa da criança e quando fui pendurar para secar veio correndo aquele pistoleiro, um que é ou da fazenda Cachoeira, ou da Cambará ou da Vera Cruz. Eu corri ao redor da minha casa para fugir dele, mas eu caí e ele atirou no meu braço. Eles vieram aqui me atacar, essas pessoas são das fazendas. Eles me disseram que queriam matar três indígenas e depois entregariam a terra. Eles atiraram em mim com bala normal, mas atiraram mais de oito balas de borracha na minha casa. Eu entreguei tudo para a polícia, mas eles não querem nos ajudar. A polícia só me disse que quando isso acontecer era para eu correr e me esconder. Depois de ser baleada, fui ao hospital em Iguatemi e eles não me atenderam, tive que ir na cidade de Naviraí, onde me deram os pontos e fizeram curativo. A polícia me disse para correr e me esconder, mas onde? Eu estou na minha casa. A Polícia Civil e a Militar devem estar ligadas com os fazendeiros, eu sei disso. E nada fizeram. Não é fácil viver assim, não é fácil — lamenta.

— Eu posso morrer, mas a minha família vai continuar na luta por essa terra, e vai morar nela. Tenho certeza, eu vou usar essa terra, eu vou morrer, mas eles vão ganhar essa terra. Meus filhos vão viver nessa terra.

'Pisaram na minha barriga e eu tive que ganhar cesárea'

Além de Anita, outra indígena, que faz parte do tekohá (como são denominados seus territórios) Pyelito Kue, contou ao GLOBO as violências que sofreu também na mesma ocasião que Anita. Elizete (nome fictício) estava grávida de dois meses quando foi agredida por pistoleiros, também nos ataques em novembro do ano passado, revela a mulher.

— Os pistoleiros pisaram na minha barriga e me machucaram também — afirmou Elizete que precisou passar por uma cesárea de risco para ter o bebê, por conta dos ferimentos.

— Agora mesmo que eu falei para o cacique, para o líder que a minha perna, estou sentindo muito até agora, que bateram, bateram na outra menina também. E também eu me escondi quando começou o tiro, eu me escondi embaixo da lama para proteger meu bebê naquele dia. É muito triste o que aconteceu naquele dia. E até agora está sempre fazendo tiro por aqui. Minha bebê nasceu traumatizada quando dorme até agora. Ela fica assustada. Por isso que eu ganhei cesárea também, que eu peguei pressão alta, né? Quando eu ouvi um monte de tiro eu peguei pressão alta. Aconteceu naquele dia muito tiro, bateram em nós. É, eu vi também a menina que estava pegou na minha frente, bateram nela, né? Mas eu fiquei escondida embaixo da lama e ali que os pistoleiros me procuraram, os capangas. E pisaram na minha barriga porque eu me escondi debaixo da lama. E procuraram de dia até de noite os outros, escondidos para não matar a gente. Mas falaram que mataram alguns. Me mataram também naquele dia. Porque pisou na minha barriga. E deu três tiros perto de mim e o baraulho fez sair sangue do meu nariz. E naquela hora o capanga do pistoleiro falou assim: “Sim, eu já matei uma aqui e eu vou buscar a corda e nós vamos jogar lá no rio ou nós vamos levar no Paraguai?” E depois foi de novo, foi buscar corda. E então quando ele foi, eu saí dali do outro lado, para ficar embaixo da lama. Mas muito bicho. Tem sucuri lá, mas eu fiquei lá para poder me proteger. Passei fome, fiquei na lama com chuva — relembra.

Conflito entre povos originários e fazendeiros no MS e no Paraná tem se intensificado 
— Foto: Renaud Philippe

— Mas tudo já passou e eu sobrevivi. Eu estou aqui. Mas eu não vou desanimar pela nossa terra, mesmo. Eu quero mesmo é pedir para vocês agora: demarcação já! Não tem mais espaço para plantar mandioca, para plantar qualquer coisa. Para criar mais uma galinha, para criar nada, aqui não tem mais espaço. E quando nós plantamos não dá nada, né? Por isso que nós queremos demarcar. Eu te peço para vocês nos ajudarem para demarcar a nossa terra — finaliza.

Denúncias ignoradas, investigações paradas

O GLOBO entrou em contato com a Superintendência regional da Polícia Federal deq Mato Grosso do Sul e com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) do estado sobre a existência de boletins de ocorrência em relação às denúncias das agressões sexuais, além de contatar a Delegacia da Polícia Civil de Iguatemi. Os órgãos afirmaram não ter encontrado nenhum registro de estupro em novembro de 2023 na região. Além disso, a delegacia de Iguatemi afirmou não ter encontrado ocorrências relacionadas a estupro ou abuso sexual com mulheres indígenas em setembro de 2016.
Despacho da Polícia Federal com os relatos de abusos sexuais não investigados pelas autoridades 
— Foto: Reprodução

No entanto, a reportagem obteve um despacho da delegacia da PF de Naviraí (MS), em que o órgão afirma que as investigações sobre as denúncias do povo guarani kaiowá feitas em novembro do ano passado "estão em andamento, sendo realizadas diligências pelos policiais federais". Ainda no documento — assinado pelo delegado federal Adenilton Figueiredo do Carmo — a PF desconsidera que houve negligências dos órgãos públicos em relação às denúncias de abuso sexual feita pelas mulheres, já que os possíveis crimes "não produziram lesões a serem constatadas por meio de atendimento médico" .

O despacho menciona que foram tomados depoimentos de todas as vítimas, os quais O GLOBO teve acesso na íntegra. Neles, as mulheres repetiram os mesmos relatos que fizeram à reportagem. Constam também as falas de outras quatro vítimas indígenas, um homem e três mulheres.

A advogada especialista em Direitos Humanos Talitha Camargo — que é parte ativa na defesa dos indígenas do tekohá Pyelito Kue — emitiu uma petição, assinada em conjunto com o advogado criminalista e professor de direito penal, Pedro Lazarini Neto, em que denuncia os crimes contra a comunidade guarani kaiowá.

— As mulheres indígenas relataram que alguns membros da equipe médica do hospital as chamaram de invasoras, e por conta disso houve uma retração de confiabilidade das pacientes vítimas relatarem as violências sexuais e agressões físicas. Após contato com o Ministério da Saúde, as indígenas foram atendidas novamente, mas ainda assim sem o acolhimento devido. Entendemos que o problema é estrutural permeado por estereótipos, o que nos faz concluir que não há respeito à dignidade humana dos povos indígenas no Brasil, e que entre os 33% do crescente de violência contra a mulher do último Anuário de Segurança Pública provavelmente é muito maior, pois como exemplo, o presente caso caiu na invisibilidade da estatística. Já que sequer investigação foi realizada — afirma Talitha.

Na petição, os advogados anexaram fotos de ferimentos sofridos pelas vítimas, alegando que, além dos abusos, as vítimas também foram sequestradas, torturadas e tiveram seus bens, alimentos e roupas incendiados.

A petição foi direcionada à Presidência da República e aos ministros da Casa Civil, da Justiça e Segurança Pública, dos Povos Indígenas, do Meio Ambiente, da Saúde e os Direitos Humanos e Cidadania. De acordo com os advogados, a Polícia Federal só foi ao local após exigência da ministra da Saúde, Nísia Trindade. Para eles, houve omissão do MJSP e do MPI.

— Esse governo, pensei que tivesse posição mais firme. Isso que nos causa preocupação — afirmou Larazini.

O documento foi enviado em dezembro do ano passado e exigia a criação de uma força tarefa entre o Ministério Público Federal (MPF), Receita Federal, Justiça Federal, Polícia Federal, Força Nacional — composta em parte por policiais militares indígenas.

Outra petição, também assinada pelos dois advogados, enviada em fevereiro deste ano, reitera o pedido de criação da força-tarefa, desta vez somente ao MJSP.

— Nós fazemos esses pedidos, que são acatados pelo gabinete do ministro. Acontece que o gabinete do ministro, quando ele repassa o nosso pedido para os subordinados dele, [...] a situação de proteção devida não ocorre.

Jovem está desaparecido há 8 meses

Foto do jovem Carlo Teixeira Gonçalves, de 20 anos, desaparecido desde novembro de 2023 
— Foto: Reprodução

Os advogados também denunciaram o desaparecimento de um jovem guarani kaiowá chamado Carlo Teixeira Gonçalves, de 20 anos. O relato do desaparecimento dele consta em ambas petições e teria ocorrido no mesmo dia das agressões sexuais às mulheres, em 22 de novembro de 2023. O jovem não fala português, somente guarani, e o documento afirma que não se sabe o paradeiro de Carlo até hoje.

"Não sabemos até então se foi mais uma vítima de homicídio — desaparecimento forçado", diz a petição.

— Existe uma carnificina naquele local. Já ultrapassou todos os limites — declarou Laranzini.

Uma das lideranças no tekohá Pyelito Kue, que preferiu não ser identificado, afirma que as intimidações de grandes fazendeiros não pararam. Ele aponta que os pistoleiros — supostamente contratados por estes donos de fazenda — continuam a soltar rojões e atirar ao redor da ocupação indígena.

— Na verdade, a gente não está provocando eles, mas eles sempre estão provocando a gente.

No relatório do Cimi, está registrado que, durante os ataques relatados em novembro, os seguranças teriam conversado entre si, na frente dos indígenas, se atirariam os corpos "no rio ou no Paraguai".

"Um indígena conta que ouviu de um dos agressores: 'se não fosse o meu patrão tão bonzinho, eu ia meter [um tiro de] doze nas tuas costas. Ia fazer um buraco'".

Segundo a publicação, a libertação do grupo só teria ocorrido após ter circulado a informação da presença de jornalistas na região. No mesmo dia, a cineasta Ana Carolina Mira Porto, o engenheiro florestal Renato Farac Galata e o fotojornalista canadense Renaud Philippe foram alvo de agressões e ameaças na região.

— Minha fala é que a gente está precisando da demarcação. Esse tekohá é antigo, é aldeia. [...] Os brancos falam que a gente é invasor. Não, a gente não é invasor. Quem é invasor é o fazendeiro — afirmou Claudencia, um das vítimas de violentadas.

'Cavem um grande buraco e enterrem nossos corpos'

Confronto entre Guaranis Kaiowás e fazendeiros na cidade de Iguatemi (MS) é antigo 
— Foto: Renaud Philippe

Os conflitos entre os guarani kaiowá e fazendeiros da região já se arrastam por décadas e têm se intensificado nos últimos anos. Em 2012, o tekohá Pyelito Kue ficou nacionalmente conhecido após uma carta escrita pelo povo ter ampla repercussão e chocar o país. No documento, eles declararam a 'própria morte'.

"Solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. (...) Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui", disse o documento.

A carta veio em resposta a uma ordem de despejo expedida pela Justiça Federal em setembro do mesmo ano. Os guarani kaiowá ocupavam uma área próxima ao rio Jagui, também em Iguatemi.

O episódio é apenas um entre diversos caso de violência que dezenas de indígenas das etnias guarani kaiowá e avá-guarani denunciam em municípios de Mato Grosso do Sul e Paraná (PR), principalmente próxima à fronteira com o Paraguai. A luta dos indígenas é para retomarem a posse da TI Iguatemipeguá I — território que é identificado e delimitado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde 2013.

Os incidentes expõem a lentidão de autoridades para resolver a questão das demarcações de terra, que ficaram paradas por seis anos durante os governos Temer e Bolsonaro e estão aquém do esperado no governo Lula III. Além disso, o relatório de Violência contra os povos indígenas do Brasil, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mostra que a ação do Congresso é considerada como entrave nas pautas de proteção.

Na última quarta-feira, dia 31, o presidente Luiz Inácio Lula da SIlva esteve em Corumbá, região pantaneira de Mato Grosso do Sul, onde representantes doo povo guarani kaiowá viram a possibilidade de falar pessoalmente ao presidente sobre a situação das retomadas do povo, sobretudo em Douradina e Caarapó. De acordo com o Cimi, Lula não recebeu os indígenas, mas apenas um documento com reivindicações. O secretário do MPI, Eloy Terena, foi destacado pelo governo para conversar com os indígenas.

O artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 dispõe que a União deveria concluir a demarcação de terras indígenas a partir de cinco anos após a promulgação da Constituição. De forma literal, isso deixaria o Estado brasileiro, pelo menos, 31 anos atrasado com os direitos prometidos aos povos originários.

Disputas no Paraná

Focos de fogo na tekohá Tatarendy — Foto: Divulgação

Perto da fronteira com o Mato Grosso do Sul, indígenas avá-guarani, que ocupam partes do Paraná, afirmam que vêm sendo atacados desde o início da retomada de porções da TI Tekohá Guasu Guavira na cidade de Terra Roxa, desde o início de julho. Vilma Vera, liderança avá-guarani, conta que a ocupação fica cercada 24 horas por pistoleiros, que impedem a saída de pessoas.

— E até agora a gente não conseguiu entender ainda qual é a posição da Polícia Federal, porque esses crimes estão acontecendo na frente deles. Eles veem as coisas que os fazendeiros fazem e até agora ninguém está sendo punido, ninguém está sendo intimado — protesta

Vera aponta que os pistoleiros estariam ateando fogo na mata ao redor da retomada, cercando os indígenas. Para ela, a ação teria como propósito incriminar os avá-guaranis, a fim de pôr a opinião pública contra a ocupação.
Conflitos entre fazendeiros e indígenas escalonam no Paraná

— Estamos não só numa situação de violência, mas estamos no contexto de guerra mesmo. É guerra entre os povos indígenas e os fazendeiros. E estamos pedindo socorro para as pessoas que estão ali, que querem ajudar a gente — declarou.

Ilson Soares, outra liderança indígena da região, afirma que as retomadas começaram por conta da falta de espaço para cultivo nos locais onde se encontravam.


— Aqui, as aldeias estavam confinadas em pequenos espaços à margem das BRs, no meio das cidades, em regiões de pedreira, sem espaço para cultivo, sem espaço para a produção de nada.

Na tekohá Taturi, na cidade de Guaíra (PR), Ilson relata ataques contra indígenas, que teriam sido atropelados por pistoleiros que dirigiam uma caminhonete.

— E esses indígenas que foram feridos, que foram machucados, eles não puderam ser atendidos porque os fazendeiros não deixaram o SAMU chegar no local. Também não deixaram a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) entrar para fazer o atendimento e não deixaram socorrer os indígenas feridos.

O juiz da 2ª Vara Federal de Umuarama (PR), João Paulo Nery dos Passos Martins, determinou a reintegração de posse de uma fazenda ocupada pelos indígenas em Terra Roxa. A decisão foi feita no dia 19 de julho e foi dado um prazo de 10 dias para a desocupação dos Avá-Guarani.

O mesmo juiz emitiu uma ordem que proíbe a Funai de entregar lonas ou outros materiais que possam ser utilizados para construção de abrigos às comunidades indígenas que ocupam a região.

— Ele jogou os guaranis para a morte agora e deu um prazo de 10 dias para que a reintegração de posse seja cumprida. [...] então a gente está correndo contra o tempo, está correndo contra o relógio. E o Estado agora, dentro de 10 dias, vai carregar no currículo o massacre dos guaranis em Guaíra e Terra Roxa — declarou Ilson, no dia em que a decisão foi emitida.

O que dizem as autoridades

O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse em nota enviada ao GLOBO que o governo federal deslocou equipes do MPI, Funai e do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, a fim de atuar nas áreas de conflito do Mato Grosso do Sul e Paraná.

Após conversas com lideranças indígenas locais, o ministério afirmou que está articulando junto aos estados a fim de reforçar a segurança pública nos municípios que são focos de embates, com o apoio da Força Nacional de Segurança Pública para garantir a segurança dos povos originários.

"A Força Nacional de Segurança Pública está na região de MS e teve seu efetivo reforçado com contingente vindo do Paraná para intensificar rondas permanentes e dar suporte às famílias indígenas", disse em nota o MPI.

No Paraná, o MPI afirma que foi criado um Grupo de Trabalho (GT) "para que os envolvidos na disputa pensem juntos uma maneira de promover a regularização fundiária na região".

"Como principal foco, será discutida a participação direta da Usina Hidrelétrica Itaipu na aquisição de terrenos como forma de reparação histórica ao povo indígena."

O GT será composto pelo governo do estado do Paraná, prefeituras de Terras Roxa e Guaíra, Polícia Militar, Polícia Federal, FNSP, MPI, Ministério Público Federal (MPF), Funai, representantes dos povos indígenas locais e representantes dos ruralistas, indicados pelo Sindicato Rural de Terra Roxa.

A partir dos resultados feitos pelo GT, ações coordenadas pelo MPI — em conjunto com outros ministérios e órgãos do governo — serão implementadas. De acordo com o ministério, o plano é reforçar a assistência e segurança aos povos indígenas, monitorando conflitos fundiários com o auxílio de órgãos públicos.

"O MPI enfatiza que a instabilidade gerada pela lei do marco temporal (lei 14.701/23), além de outras tentativas de se avançar com a pauta, como a PEC 48, tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas."

Indígenas protestam contra a lei do marco temporal, em Brasília


A marcha tem o lema "Nosso marco é ancestral"

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) afirmou em comunicado ao GLOBO que a Polícia Federal é a responsável por atuar nas tekohás do Cone Sul, em Mato Grosso do Sul. Segundo o órgão, a FNSP atua no território de forma subsidiária à PF, de acordo com a Portaria de nº 726/2024.

Já no Paraná, a Força Nacional opera em apoio à Funai, a partir da Portaria MJSP nº 683/2024, "nas atividades e nos serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio".

"Vale ressaltar que a Força Nacional tem intensificado sua presença nas regiões nos últimos 15 dias, intermediando conflitos e realizando ações de acordo com o planejamento dos órgãos apoiados, com a finalidade de garantir a segurança de todos. O efetivo mobilizado trabalha com foco na garantia da segurança dos indígenas, com respeito às culturas e evitando qualquer forma de violação dos direitos humanos."

A Funai afirmou à reportagem que tem acompanhado de perto a intensificação dos conflitos nas áreas citadas em MS e PR. De acordo a organização, "a situação tem se tornado extremamente preocupante" e destacou o aumento da violência na região.

"Em resposta à situação de crise, a Funai tomou várias medidas importantes. Além de enviar equipes para dialogar diretamente com os indígenas e avaliar as condições nos locais, o órgão tem mantido contato com as autoridades competentes, buscando a mediação dos conflitos e a garantia de segurança para todos os envolvidos."

A Funai reforçou que está compromissada com a defesa dos direitos dos povos indígenas e que seguirá acompanhando de perto os conflitos.

Em nota ao GLOBO, a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) do Paraná afirmou que as disputas são de competência da Justiça Federal e da PF.

"A Secretaria de Segurança se coloca à disposição para atuar de forma subsidiária e em apoio a Justiça Federal, se por ventura for demandada, e após estudo de situação e avaliação de riscos que devem ser feitos pelas Forças Federais."

A Superintendência Regional da PF em Mato Grosso do Sul disse à reportagem que não possui registros de ocorrências com comunidades originárias em Iguatemi.

"A Polícia Federal em Mato Grosso do Sul acompanha, de perto, todos os eventos que figurem comunidades originárias, sempre acompanhada da FUNAI, Força Nacional de Segurança e Ministério Público Federal."

A Superintendência Regional da PF no Paraná não retornou aos contatos até a publicação desta reportagem.

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