Em ações na Justiça, cemitérios privatizados respondem por ossadas expostas, longos atrasos e até corpo sem tratamento e ensacado em velório
Ilustração / Metrópoles
São Paulo – Carlos G. perdeu sua mãe, Dirce, em abril de 2023, aos 82 anos de idade. Contratou o velório e sua cremação no cemitério da Vila Alpina, na zona leste de São Paulo. Quando o caixão chegou à cerimônia, ele estranhou. Não conseguia ver o rosto da mãe, mesmo apontando uma lanterna de celular dentro da urna. Sem entender, abriu a tampa e encontrou Dirce em um saco preto — semelhante, segundo ele, a um saco de lixo.
Árvore derruba muro do Cemitério Vila Formosa e atinge ossuário Divulgação / Defesa Civil
Homem afirma que corpo da mãe chegou ao velório em um saco preto dentro do caixão e sem preparo Ilustração / Metrópoles
Pais afirmam que velório de recém nascido atrasou quatro horas e caixão chegou como "uma mercadoria qualquer" no banco da frente de carro Ilustração/Metrópoles
Árvore derruba muro do Cemitério Vila Formosa e atinge ossuário Divulgação / Defesa Civil
A história de Carlos é uma entre mais de uma dezena de experiências traumáticas nos cemitérios de São Paulo relatadas à Justiça. Esses casos têm dado ensejo a ações com pedidos de indenização por danos morais e até mesmo boletins de ocorrência na Polícia Civil de São Paulo. Episódios como esse já aconteciam antes das privatizações, mas não deixaram de ocorrer após as concessões, que acabam de completar um ano.
Como mostrou o Metrópoles, somente no último ano foram registradas pelo menos três quedas de muros, ossadas expostas, falta de zeladoria e reclamações sobre o aumento de preços dos serviços. Um levantamento da reportagem com base em 20 processos judiciais de famílias contra as concessionárias evidencia casos de perda e descuido com corpos, atrasos e outras falhas na prestação dos serviços a quem acabou de perder um familiar ou amigo.
Saco preto sem flores
A história que deu início a essa reportagem, segundo a família que a relata, é ainda pior. À Justiça, o filho de Dirce disse que, após descobrir sua mãe em um saco preto, o caixão foi aberto. Dentro do invólucro, ele diz ter descoberto que sua mãe não recebeu qualquer tratamento estético para o velório. Diz, ainda, que nem as flores encomendadas chegaram.
A ação foi movida contra a Consolare, que administra outros cemitérios, mas, neste caso, foi apenas contratada para tratar e transportar o corpo, além de pôr enfeites e flores. “A ré simplesmente negligenciou e tratou aquele ente querido como se fosse um indigente”, diz a defesa da família, sobre o serviço da Consolare.
A concessionária se defendeu afirmando que foi contratado um modelo de cremação em que o corpo permanece no saco plástico, com caixão fechado e sem ornamentos. A empresa afirma à Justiça que a família sabia desses detalhes e assinou o contrato autorizando essa modalidade de serviço. O caso ainda não foi julgado.
Em outro caso, desta vez envolvendo a concessionária Velar, familiares relatam que o corpo de uma mulher chegou ao velório inchado, roxo e cheio de cortes da autópsia, sem qualquer preparo ou maquiagem.
Velório sem corpo
A família de Tadeu B. afirma que pagou R$ 6,9 mil pelos serviços de transporte do corpo, velório e cremação de seu pai no dia 27 de maio de 2023 no cemitério da Vila Alpina. A cerimônia seria às 16h e a cremação às 20h. Eram 17h10 quando, ao estranhar o atraso de mais de uma hora, parentes insistiram com funcionários e descobriram que o corpo estava sendo transportado diretamente para o crematório.
Segundo a família, foi uma correria para interceptar o veículo e fazê-lo voltar para um velório tardio. “Ora Excelência, se ninguém fosse até o crematório, os Autores sequer teriam a chance de realizar o velório do próprio pai”, diz a defesa da família”, diz. Ao fim, dizem os filhos do falecido, restou pouco tempo para o velório.
Em primeiro grau, a concessionária Velar admitiu o equívoco, mas disse que “não houve nenhum prejuízo ou dano aos autores”. A Justiça extinguiu o processo sem decidir sobre seu mérito porque entendeu que a defesa da família escolheu a via errada para movê-lo.
Trata-se de uma questão técnica. Nesses casos, é usual que a ação seja movida novamente somente para atender requisitos técnicos. Procurada, a família não se manifestou sobre a decisão e se moveria o novo processo.
Ossada do pai exposta
Em julho de 2023, a família de João P. pediu para fazer a exumação do corpo e o fechamento completo de seu túmulo. Segundo familiares, foi previamente conversado com o Grupo Maya, concessionária responsável pelo cemitério da Saudade, em São Miguel Paulista, que a ossada seria entregue em uma caixa.
No entanto, quando as filhas de João chegaram ao local, se depararam com ossos e roupas de seu pai jogados no chão ao lado de restos do caixão despedaçado e espalhado. A família moveu uma ação pedindo indenização a título de danos morais contra a concessionária.
Em sua defesa, o Grupo Maya afirmou no processo, ainda não julgado, que os serviços foram “devidamente e adequadamente prestados” e que não houve qualquer falha. “Tem-se que a real irresignação das Autoras é contra o procedimento de exumação propriamente dito”, diz.
Ossos sumidos
Em pelo menos dois casos levantados pelo Metrópoles, famílias também brigaram para encontrar ossadas desaparecidas no ato da exumação dos corpos e chegaram a procurar a polícia.
Um dos episódios aconteceu no cemitério da Vila Alpina, de responsabilidade da Velar. Uma família afirma que descobriu que a exumação de um ente querido foi feita sem a presença de parentes. Após muito questionamento sobre o paradeiro do corpo, funcionários apareceram com um saco preto cheio de restos mortais e disseram ser do falecido.
Diante da incerteza sobre se era realmente o corpo do familiar, comunicaram à Polícia Civil o ocorrido. A incerteza sobre os restos mortais tem impossibilitado a esposa do morto, Edna Z., de cremar seus restos e jogar as cinzas ao mar — um desejo de seu falecido marido, segundo ela. Eles também requerem indenização à Justiça.
A concessionária alegou à Justiça que a exumação administrativa foi feita porque a família perdeu o prazo para agendar o procedimento. O caso não foi julgado.
Caixão de bebê no banco da frente
O casal Ivanildo O. e Gabriela L. perdeu a filha apenas 20 dias depois de nascer. Eles afirmam ter contratado o velório, mas o corpo do bebê chegou no horário do encerramento do serviço. Chegaram a achar que o corpo estava desaparecido. O caixão foi encontrado no banco de carona do carro. Segundo a defesa do casal, “como se fosse uma mercadoria qualquer”.
O caso aconteceu no cemitério do Araçá, na região do Pacaembu, administrado pela concessionária Cortel. No processo, a empresa afirmou que conseguiu resolver o sumiço do corpo localizando o veículo via satélite, e que o atraso de quatro horas não impossibilitou que o casal ajustasse o horário do velório.
Não adiantou. A empresa foi condenada a indenizar o casal em R$ 10 mil. A juíza do caso afirmou que “não é crível que, em qualquer espécie de traslado dessa capital, a menos que se traga um motivo excepcional e justificado, demore-se quatro horas (especialmente porque o cemitério e o serviço de verificação, pelo que consta dos autos, não estavam distantes um do outro)”.
“É evidente a falha do serviço, que culminou com a impossibilidade, reforce-se, de realização de um velório digno, pelos pais, quanto à sua filha falecida com poucos dias de vida”, escreveu a magistrada.
Concessionárias não comentam casos específicos
Procuradas, as concessionárias Consolare e Cortel afirmaram que não vão comentar casos em andamento na Justiça. O Grupo Maya não se manifestou.
A Velar SP afirma que “respeita o direito de propositura de ação judicial por parte do munícipe, ficando sempre à disposição da Justiça, do cidadão e seus representantes legais para os esclarecimentos e devida solução de cada caso apresentado”.
“Estas situações – que vão desde reclamação de serviços que teriam sido contratados e por ventura não utilizados, até acidentes de trânsito envolvendo veículos da concessionária —, são acompanhadas pelo Departamento Jurídico da empresa e as decisões judiciais, quando publicadas, são cumpridas à risca”, diz a concessionária.
A empresa afirma ainda que “estes casos representam cerca de 0,05% dos quase 24 mil atendimentos realizados pela Velar SP ao longo de um ano de concessão na cidade de São Paulo”.
“A empresa respeita o direito de privacidade dos proponentes e, por questão ética, não comentará os casos de forma individualizada. A Velar SP reafirma seu compromisso de atender a população com atenção e acolhimento e sua posição de imparcialidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, que norteiam sua relação com a população de São Paulo”, diz.
A Velar SP diz, ainda, que “tem aperfeiçoado seus processos de gestão para oferecer uma melhor prestação de serviços, acolhedora e humanizada”. “Para o caso de qualquer reclamação ou dúvida sobre serviços ou atendimento, estão disponíveis o SAC da Velar SP (e-mail: sac@velar.com.br ) e o serviço 156 da Prefeitura de São Paulo”.
As famílias envolvidas nas ocorrências identificadas pelo Metrópoles não quiseram se manifestar. Para evitar a exposição dessas pessoas, que se dizem vítimas, a reportagem não expôs seus sobrenomes.
Todos os processos são públicos e correm na Justiça de São Paulo. As imagens da reportagem são ilustrativas e feitas com base em fotos anexadas aos autos de processos contra os cemitérios.