Em dois dias, Teatro Dulcina de Moraes, prédio projetado por Oscar Niemeyer, deve ir a leilão. Gestores correm contra o tempo para evitar
Breno Esaki/Metrópoles
Quando tocam as três campainhas tradicionais no teatro, conhecidas como batidas de Moliére, é para pedir silêncio da plateia e anunciar o início do espetáculo. Nesta semana, no entanto, o som que preconiza a mudez em cena é a batida do relógio que indica o fim do Teatro Dulcina de Moraes. Em dois dias, o prédio tombado e projetado por Oscar Niemeyer deve ir a leilão, marcado para 14 de setembro.
O lugar faz parte da sede da Fundação Brasileira de Teatro, que também mantém a Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Com 5 mil metros quadrados, azulejos de Athos Bulcão, 480 cadeiras desenhadas pelo arquiteto e designer brasileiro reconhecido internacionalmente Sérgio Rodrigues, o espaço situado no Conic – coração do Plano Piloto – será vendido para pagar apenas um pedaço da dívida.
A avaliação do prédio, pelo edital de leilão, e o lance mínimo é de R$ 18 milhões, embora o valor da dívida, seja, de fato, R$ 423.875,07.
Desde maio, quando o Metrópoles anunciou em primeira mão que o teatro tinha data para ser leiloado, séries de reportagens têm sido feitas mostrando a situação da entidade e as medidas adotadas para tentar reverter a possível venda. De lá para cá, os novos gestores da fundação tentaram vaquinhas, negociaram débitos – a luz até foi religada – catalogaram grande parte de um acervo, com vestidos e quadros milionários dentro do Dulcina.
“Nos últimos 18 meses, a nova gestão assumiu a direção da Fundação Brasileira de Teatro com uma missão específica: abrir os arquivos da instituição para entendimento real do imbróglio que abala a Faculdade e o Teatro Dulcina há décadas”, destaca carta aberta assinada pelos responsáveis da atual gestão da entidade. ” A dificuldade inicial encontrada foi estrutural. A edificação estava sem energia elétrica e rede de água e esgoto por quase três anos, visto que as atividades foram pausadas no início da pandemia, sem administração interna para o gerenciamento de contas mensais, folhas de pagamento e vigilância de itens básicos.”
O documento publicado no domingo (10/9) na página oficial da Fundação destaca o rombo financeiro na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes causado após alta inadimplência nas mensalidades. Segundo o texto, 85% das mensalidades, até o segundo semestre de 2022, não foram pagas.
No último relatório elaborado pela Direção Acadêmica, o primeiro semestre de 2023 contava com 48 alunos, sendo 18 matriculados em Licenciatura em Artes Cênicas, 16 alunos em Licenciatura em Artes Plásticas e 14 alunos em Bacharelado em Interpretação.
Acervo
Para tentar reverter a situação, artistas locais se reuniram para tentar arrecadar R$ 600 mil, o que avaliam ser valor suficiente para quitar o débito que leva o prédio a leilão, com os valores corrigidos. A dois dias para a data, os protagonistas do cenário cultural levantaram apenas R$ 5 mil.
Em meio a dívidas, o acervo começou a ser catalogado. O objetivo é dar início a um inventário dos artigos pessoais, profissionais e históricos da vida e da obra da atriz, que possa servir também para que a venda não seja permitida. Também é a primeira vez que os materiais são trabalhados na intenção de serem expostos, para que as pessoas conheçam.
Os trabalhos para recuperar e até mesmo descobrir o que tem no acervo da Dulcina tiveram início há sete meses. Até o momento, 218 figurinos foram inventariados. Ainda há 800 peças de roupa em cabides e outras mil dobradas. A equipe também conseguiu digitalizar 2 mil fotos históricas, desde a década de 1940, quatro diários da Dulcina e um de seu marido e grande companheiro Odilon Azevedo. Inclusive, no diário do grande mecenas, há uma carta em que o autor Monteiro Lobato apresenta críticas e impressões pessoais a um texto escrito por Odilon.
Antes mesmo de Brasília começar a ser desenhada, a atriz Dulcina de Moraes já tinha um conjunto original feito sob medida pelo próprio Christian Dior. Documentos registram que as três peças raras – saia, bolero e um “tomara que caia” – foram encomendados pela brasileira na viagem que fez a Paris, em 1952. O conjunto luxuoso que representa a moda pós-guerra ficou desaparecido por anos, separado em peças do acervo no subsolo do Conic. Em julho, pesquisas nos materiais localizaram o traje da alta costura e recuperaram a roupa de grife.
No local também foram encontrados 50 ofícios da época da ditadura, com documentos da censura a três espetáculos da companhia de teatro. Seis baús de turnês teatrais, com 250 chapéus, 30 pares de luva, mais 40 gravatas, 200 pares de sapato, 20 perucas usadas por Dulcina e mais de 30 artigos de uso pessoal. Mais de 200 quadros também foram encontrados no acervo, inclusive com fotos originais da Guerra de Canudos. Originais da revista O Pasquim de 1974 a 1989 também estão disponíveis no local.
“Se esse lugar for a leilão, o que vamos fazer com tudo isso? Onde vamos colocar todos esses vestidos? O que vamos fazer com tanta história?”, questionou diretor do Espaço Cultural da Fundação Brasileira de Teatro, o ator e produtor Josuel Junior.
Em 30 de agosto, o juiz federal Alexandre Machado Vasconcelos, da 18ª Vara Federal, assinou o edital com as últimas orientações para a venda do prédio.
“No local existe o prédio da Fundação Brasileira de Teatro, composto de dois subsolos, térreo e quatro pavimentos superiores. O prédio não é novo, e precisaria de reformas, encontrando-se atualmente fechado em virtude de corte de energia elétrica e do abastecimento de água”, destaca o documento.
Caso o espaço não seja arrematado em 14 de setembro, outra data também já foi previamente estabelecida: 28 de setembro. Se o processo correr, a partir de outubro o cenário do Conic pode começar por mudanças.
“Temos que buscar de todas as formas possíveis suspender esse leilão. Em função de uma dívida de cerca de R$ 426 mil, querem leiloar um patrimônio que, do ponto de vista material é muito maior que isso e, do ponto de vista imaterial é incalculável. A história do teatro brasileiro e a história de Dulcina não têm preço e não podem ser colocadas à venda”, destaca a deputada federal Érika Kokay (PT-DF).
A parlamentar foi relatora do Projeto de Lei nº 25, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados, que tem o objetivo de considerar Dulcina de Moraes uma heroína da pátria. Em junho, a CCJC aprovou a nomeação da personalidade para o livro de aço que reúne nomes como Tiradentes, Anita Garibaldi, Santos Dumont e Machado de Assis .
Dívidas
Mais antiga que a construção de Brasília, a Fundação Brasileira de Teatro está atolada em dívidas. A entidade, que guarda 70 anos da história do teatro nacional, foi trazida pela própria Dulcina de Moraes do Rio de Janeiro para Brasília.
As dívidas são de origem diversas, como trabalhistas, previdenciárias, multas tributárias, débitos com Governo do Distrito Federal, juros acumulados, processos, entre outros. A maior fatia desse bolo de dívidas é a previdenciária – são R$ 16.023.637,63.
O endividamento deixa o CNPJ da fundação em condição negativa, o que não permite receber emendas e outros tipos de repasses financeiros.
Na sequência, foi estimado o montante de R$ 3.451.081,58 em dívidas, decorrentes de processos que a fundação perdeu. “A grande maioria desses processos só foi perdido à revelia, inclusive a ponto de serem executados em razão da falta de defesa técnica”, conta o atual secretário-executivo da Fundação Brasileira de Teatro, Roberto Neiva.
Às luzes
Uma das diversas dívidas que a Fundação Dulcina de Moraes acumulou foi em relação às contas de energia. O espaço chegou a passar três anos na escuridão. O palco do Teatro Dulcina de Moraes foi iluminado pela primeira vez em 25 de julho. O prédio tombado acumulava dívidas com a Neoenergia, chegando ao valor de R$ 480 mil e a partir de negociações com a distribuidora permitiram reduzir os débitos para R$ 65 mil e ganhar prazo para o pagamento.
As negociações fazem parte da estratégia adotada pela atual gestão da fundação que pretende – caso consiga manter o espaço – revitalizar o local e dar sequência às atividades culturais no espaço. A estimativa é agora tentar parcerias para que, em um ano, o teatro possa voltar a ser acessível ao público.
Em nota, a Neoenergia destacou que realizou uma série de reuniões com os responsáveis pelo local e ofereceu uma renegociação dos débitos, com condições para facilitar o pagamento e manter as faturas em dia. Enquanto isso, as cortinas do teatro estão para se fechar. Nesta quinta-feira (14/9), é fim de cena para o Dulcina de Moraes.