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FUTEBOL - Primeira árbitra brasileira relembra oposição de Havelange a mulheres no futebol: "E quando menstruar?"

Com as negativas do presidente da CBD, João Havelange, Léa Campos teve que apelar para o ditador Médici para conseguir validar seu diploma na década de 60

A sociedade avança lentamente e as mulheres ganham cada vez mais voz no universo do futebol, historicamente dominado pelos homens. Se é difícil para elas em 2023, imagine como era há 55 anos, no final da década de 60. Um perfeito espelho do cenário da época é a história de vida de Asaléa de Campos Micheli.

Léa enfrentou o preconceito e a misoginia para ser a pioneira na inserção das mulheres no esporte mais popular do planeta. A incansável luta dessa mineira é digna de cinema.

Léa Campos, primeira árbitra do Brasil — Foto: Arquivo Pessoal

Na breve e intensa carreira, a primeira árbitra da história do futebol teve que atravessar personagens dos mais controversos do Brasil, como o ditador Emílio Garrastazu Médici e o ex-presidente da Fifa João Havelange.

Aos 78 anos, Léa mora nos Estados Unidos há três décadas, mas nunca deixa de engrossar o coro na batalha pelo espaço das mulheres brasileiras no futebol.

– Não joguem a toalha antes de subir no ringue. Porque só vence a luta quem briga por ela. Eu comi o pão que o diabo amassou com o rabo para me tornar árbitra de futebol. Só eu sei quantas humilhações eu passei. Mulheres de jogadores chegavam a falar que eu apenas queria encontrar um jogador rico para casar – lembrou Léa Campos.

João Havelange: o obstáculo de um sonho

Léa estudou por oito meses na escola de árbitros da Federação Mineira de Futebol, em 1967. Ela se formou e conseguiu o diploma, mas faltava a validação que dependia da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). Na época, vigorava um decreto-lei que impedia as mulheres "da prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza".

O presidente da CBD (atual CBF) era João Havelange, que ostentava credibilidade e poder. Isso começou a mudar somente em 2013, quando escândalos de corrupção transformaram a imagem do único brasileiro a ser presidente da Fifa (de 1974 a 1998).

Um reflexo disso foi o estádio Engenhão, no Rio de Janeiro, que levava o nome de Havelange. Após o início das investigações, o Botafogo mudou o nome para Nilton Santos. Três anos depois, em 2016, Havelange morreu aos 100 anos de idade.

Com tudo isso em jogo, dá para imaginar o tamanho deste personagem do futebol no auge das décadas de 1960 e 1970, a época de ouro do esporte no país. Era esse o grande opositor à presença de uma mulher no futebol.

Com a insistência de Léa Campos em tentar validar seu diploma para ser árbitra, Havelange rapidamente se tornou o inimigo número um, fazendo de tudo para impedir a realização do sonho dela e de tantas mulheres.

João Havelange, ex-presidente da CBD e da Fifa — Foto: ge

Foram várias tentativas de diálogo entre Léa e Havelange, no final da década de 1960, com diversos argumentos bizarros do presidente da CBD. O mais marcante foi em uma conversa em 1967, quando João Havelange citou a menstruação como um dos motivos que a impediria de apitar um jogo.

– Primeiro ele disse que a Constituição proibia. Procurei o Pedro Aleixo que tinha sido o vice-presidente do país e era um tremendo jurista. Ele disse: você pode apitar, pode dirigir, pode ser técnica, pode um monte de coisa, só não pode jogar, jogar está proibido. Eu fui e levei a Constituição para o tal de Havelange. E falei: a Constituição não fala que mulher não pode apitar futebol. Fala que não pode jogar. Eu não quero ser a orquestra, eu quero ser o maestro da orquestra, que é bem diferente. Quero apitar futebol. Aí ele falou: você está certa, mas a constituição óssea da mulher é inferior à do homem. Então, você não pode apitar.

– Aí falei: então quer dizer que o senhor tem mais ossos no corpo do que eu, né? Fui na medicina legal do Rio de Janeiro, peguei uma declaração oficial dizendo que não tinha nada a ver, que a quantidade de ossos que eu tenho, o homem tem, que a única diferença é na parte sexual. E aí levei o laudo da medicina legal e falei: “a mesma quantidade de ossos que o senhor tem no seu corpo eu tenho no meu. A diferença é que o seu sexo é pra fora, exibido. E o meu é escondido” – completou Léa Campos.

Trecho do documentário sobre Léa Campos, que retrata o episódio com João Havelange — Foto: Reprodução/Ogilvy Brasil

Foi depois de mais uma solução oferecida por Léa que Havelange lançou sua tese mais grotesca, que foi transformada até em um curta-metragem lançado em 2022.

– Ele (Havelange) falou para mim: você pode até estar certa, mas tem um detalhe: quando você menstruar, como é que você vai fazer? Eu falei: escuta aqui, dizem que o senhor é campeão de natação pelo Fluminense. Alguma colega sua deixou de competir porque estava menstruada? Não, né? Eu creio que entrar na água e estar menstruada é muito mais fácil pagar um vexame, do que correndo atrás de 22 babacas. Aí ele pegou e falou: nessa aí também você está certa. Mas o problema todo é o seguinte, põe isso na sua cabeça: Enquanto eu for presidente da CBD, mulher não joga, não apita, não bandeira, não dirige, não é técnica, não é nada. Eu falei: por que, doutor? Aí ele: "porque eu não quero e aqui, mando eu". Onipotente é só Deus, tá? – revelou Léa.

Trecho do documentário sobre Léa Campos, que retrata o episódio com João Havelange — Foto: Reprodução/Ogilvy Brasil

Com a intransigência do homem mais poderoso no futebol brasileiro, Léa Campos decidiu apelar para o então presidente do Brasil, o ditador Emílio Garrastazu Médici.

O diploma é validado, finalmente

Em seus primeiros passos no futebol, que era quase que exclusivamente para os homens, Léa passou a ser visada pelo DOPS, órgão bastante utilizado pela Ditadura Militar para a repressão. Nas contas dela, foram pelo menos 15 detenções para dar explicações sobre o porquê ela, uma mulher, praticava e apitava futebol.

Curiosamente, a história de Léa Campos com as Forças Armadas começa antes, quando ela foi Rainha do Exército. No início da década de 70, ela teve que apelar para o Exército, que governava o país em regime de ditadura, para conseguir validar seu diploma.

O apelo foi, mais especificamente, diretamente para o presidente Emílio Garrastazu Médici, considerado o mais cruel dos ditadores no período entre 1964 e 1985. A conversa foi em Belo Horizonte, como lembra Léa Campos.

– Vou falar com o pior de todos os presidentes, na maldade? Como é que você podia acreditar que o cara ia me tratar bem? Entrei, fui bem recebida, ele me serviu um vinho que eu não consegui tomar. Eu expliquei para ele: fiz o curso, passei em todos os exames físicos e agora na hora de receber o diploma meus colegas receberam o diploma e eu não. Eu preciso do diploma, porque eu tenho um convite pra apitar no México, em uma competição feminina, em 71, e eu não estou autorizada a trabalhar fora do Brasil.

– Aí ele falou: você está certa, nós vamos resolver isso. Aí ele escreveu pro João Havelange um bilhete de próprio punho dizendo: por favor, libere o diploma da senhorita Léa Campos para que ela possa representar o Brasil no mundial feminino do México, com urgência, porque o tempo dela se esvai – contou Léa.

Ex-presidente Emilio Médici, ditador que governou o Brasil durante parte da ditadura militar — Foto: Foto: Reprodução/Presidência da República

Com a autorização presidencial, Léa foi de avião da FAB para o Rio de Janeiro, onde aconteceria a despedida de Pelé da Seleção. A urgência foi necessária pois o presidente da CBD, João Havelange, viajaria no dia seguinte para a Europa para fazer campanha para a presidência da FIFA, que ele acabaria ganhando.

– Fui entregar a carta para João Havelange, que falou: Essa mulher não se cansa, eu já falei "não" para ela, um monte de vezes. Falei que enquanto eu presidir essa coisa aqui, mulher não vai fazer nada no futebol, porque eu não vou permitir. O oficial disse: "Mas tem um detalhe. Ela está com um oficial do governo que está esperando a resposta que o senhor vai dar pra ele passar para o presidente da República".

Depois de ver o cerco se fechar, Léa relata que João Havelange pediu para reunir a imprensa, que ele daria uma coletiva para um anúncio importante.

– O Havelange disse: Estou muito feliz, estou emocionado, eu só não digo que estou às lágrimas porque homem não chora. Mas é uma honra, um orgulho, uma satisfação, uma felicidade sem condições de ser medida, sem tamanho por sair no meu mandato a primeira mulher árbitra de futebol no mundo para a FIFA". O Havelange era mais falso que nota de três reais – disse.

Léa Campos, a primeira árbitra brasileira da história — Foto: Arquivo pessoal

Com o diploma em mãos, Léa começou a apitar em 1971. Ela, entretanto, não conseguiu participar do campeonato amistoso no México. O empecilho foi um problema de adaptação física, por conta da altitude do país.

– Eu tinha que ter ido antes exatamente por uma questão de adaptação. Porque a altitude mexicana é muito superior a nossa – lamentou a ex-árbitra.

Sua carreira, entretanto, seria abreviada três anos depois após um acidente gravíssimo. Ela apitou 98 jogos, ao todo.

Léa Campos em encontro com Pelé — Foto: Arquivo pessoal

Acidente obriga Léa a encerrar carreira

A luta de Léa Campos serviu de legado para as árbitras de futebol que a sucederam em todo o planeta. Ela própria teve pouco tempo para desfrutar seu diploma para apitar jogos. Apenas três anos depois da liberação, um grave acidente de ônibus obrigou Léa a pendurar o apito.

Em fevereiro de 1974, o veículo que ela estava bateu forte na carroceria de um ônibus, na cidade mineira de Três Corações. Léa ficou presa às ferragens e, por pouco não perdeu sua perna esquerda. Foram três meses na UTI, sendo um mês em coma. No hospital, rolou até boato que ela teria morrido.

– Olha que para eu falar que essa parte foi a mais dura da minha vida é porque a coisa foi feia mesmo. Eu já sofri quatro enfartos na vida e estive entubada em três. Sete vidas quem tem é o gato. Eu sou a gata – brincou Léa.

Imagem à esquerda mostra marca da cirurgia na perna de Léa após acidente sofrido — 
Foto: Arquivo Pessoal

Depois de 101 cirurgias, a ex-árbitra só voltou a andar após dois anos. O tratamento era tão complexo que só dois países do mundo tinham a tecnologia adequada para curá-la: Japão e Estados Unidos.

Com a pouca fluência no japonês, Léa optou pelo país norte-americano, onde acabaria conhecendo seu futuro marido, o jornalista esportivo colombiano Luis Eduardo Medina. É nos EUA que ela mora, desde então.

Futebol feminino e arbitragem no presente

No auge dos seus 78 anos de idade, Léa não rompe o elo com o futebol e muito menos com as personagens femininas do esporte. Foi com muito orgulho que a ex-árbitra viu na Copa do Mundo do Catar o primeiro trio de arbitragem feminina da história dos Mundiais, com destaque para a presença da auxiliar brasileira Neusa Inês Back.

– Para mim foi uma emoção, uma vitória e um triunfo. Porque essa era uma meta que eu tinha. Queria eu apitar ou bandeirar um Mundial. Mas Deus não planejou isso para mim e eu agradeço a Deus de estar viva até hoje. As três (da equipe de arbitragem na Copa do Mundo do Catar) conseguiram isso. Isso para mim foi um triunfo, foi uma vitória para mim mesma, porque é uma luta que terminou sendo coroada por isso – comemorou.

– A Neusa é uma tremenda bandeirinha, não sei por que ela é só bandeirinha. Ela tem tudo pra ser uma melhor árbitra, porque ela não é autoritária, não é exibida, não quer mostrar a si própria. E se preocupa com o jogo nos noventa minutos. Sou bem apaixonada por ela, ela é uma tremenda pessoa. A gente troca até mensagem no WhatsApp – disse Léa sobre Neusa Inês Back.

Léa Campos nos dias de hoje nos Estados Unidos — Foto: Arquivo pessoal

Léa Campos também falou sobre a árbitra Edina Alves Batista, que desde 2019 apita jogos da Série A do Brasileiro. O feito interrompeu um hiato de 14 anos sem mulheres no apito na elite do futebol nacional. Apesar de se dizer uma admiradora da paranaense, Léa fez críticas à Edina.

– Sou uma admiradora da Edina, mas não 100%, porque ela tem umas atitudes dentro de campo que não me agradam. Como por exemplo: ela vai chamar atenção de jogador, obriga o jogador vir até onde ela está. Isso não existe no futebol profissional. Ela vai mostrar um cartão e tem o número de jogador nas costas, nas pernas. Não precisa disso, é excesso de autoritarismo – opinou.

Antes de Edina, Silvia Regina de Oliveira havia sido a última árbitra a apitar um jogo de Série A, no ano de 2005. Quando o assunto foi Silvia Regina, Léa se derreteu e não poupou palavras para elogiá-la.

– A Silvia Regina é intocável. Foi a primeira a apitar jogos profissionais em São Paulo, foi a primeira a apitar clássico em São Paulo. E para mim, uma tremenda de uma mulher, uma tremenda de uma árbitra. Pena que ela já se afastou há muito tempo. Mas para mim ninguém tira a Silvia Regina do trono. Nem a Léa se morrer e ressuscitar, não toma o trono da Silvia.

Léa dá palestra para seleção brasileira feminina nos Estados Unidos, em 1995 — Foto: Arquivo pessoal

Com o lento avanço da arbitragem no país, Léa frisa que o ofício deveria ser regulamentado e profissionalizado. Este, na opinião dela, seria um dos pontos que poderiam ajudar a desenvolver o futebol e a arbitragem feminina no Brasil.

– A arbitragem não é uma profissão regulamentada. É um bico. A rede empresarial brasileira tem que acreditar nas mulheres do país. Aportar mais para as mulheres principalmente para o futebol feminino, que está jogado às traças. Nós temos aí um Campeonato Brasileiro de futebol feminino nesse momento que quase ninguém comenta. Você liga a televisão nos Estados Unidos eles falam do futebol feminino, que lota o estádio – comparou.

Léa finalizou a entrevista navegando pelo sonho dela própria e de Marta, craque brasileira eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo. É o sonho delas e de tantas mulheres de fazer o futebol feminino do país ainda maior e menos desigual.

– A Marta não é eterna. Temos que apoiar o futebol feminino. Temos que encontrar mulheres que tem o sonho da Marta, para dar continuidade ao sonho da Marta. Como temos que encontrar mais Edinas, mais Silvias, para dar continuidade ao sonho de quem? Da Lea. Porque a primeira sonhadora fui eu. Com todos com todos os pesadelos que tive, eu tive muito sonho. Se não fosse isso, eu não tinha chegado onde eu cheguei. Acho que é preciso valorizar e apoiar essas meninas, tanto as que jogam, como as que apitam e bandeiram – finalizou a sonhadora Léa Campos.

Fonte - Globo Esporte

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