Ao contrário da retórica do presidente, o mercado não se resume à elite ou aos grandes investidores; ele é feito de gente comum e só cresce
Vinícius Schmidt/Metrópoles
“É preciso parar de utilizar a palavra ‘gasto’, porque o mercado construiu uma narrativa de que tudo que você faz no Brasil que não seja pagamento de juros é gasto. Não sei se vocês já perceberam: qualquer dinheiro que vai para a saúde é gasto. Qualquer dinheiro que vai para a educação é gasto. Qualquer dinheiro para pagar aumento de salários é gasto. […] Às vezes, eu fico muito, mas muito irritado. E peço desculpas às pessoas, porque o mercado não tem coração, não tem sensibilidade, não tem humanismo, não tem nada de solidariedade. É só o ‘venha a nós o vosso reino’. O governo tem obrigação de cuidar das pessoas mais necessitadas e pronto.”
Com as palavras acima, proferidas durante um café da manhã com jornalistas no Palácio do Planalto, na quinta-feira (12/1), o presidente petista explicitou, mais uma vez, o que pensa sobre o mercado financeiro – que voltou a ser alvo da militância e de lideranças do PT. No início de janeiro, poucos dias após a posse de presidente petista, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, irritada com as oscilações do dólar e da Bolsa de Valores e o temor de investidores de que o novo governo não adote uma política fiscal responsável, já havia esbravejado: “o mercado não morre de fome!”.
Seja fruto de puro desconhecimento ou mera retórica política, o discurso petista esbarra na constatação da realidade: ao contrário do que faz crer certa verborragia de palanque, o mercado não é composto exclusivamente por grandes investidores – os chamados “tubarões” – , ricos empresários ou especuladores. Tampouco se trata de um sindicato organizado com o qual se negocia, como talvez imagine ou gostaria do presidente petista.
Grosso modo, o mercado é o conjunto de investidores – do pequeno poupador ao “tubarão” da Bolsa – que decidem seus investimentos com base nas informações que recebem sobre os rumos da economia. Trocando em miúdos: se a perspectiva é de inflação baixa e maior crescimento econômico, por exemplo, os gestores aplicam seu dinheiro com mais confiança. Por outro lado, se a expectativa é de inflação alta e desaceleração da atividade econômica, as pessoas ficam mais cautelosas ao investir.
“O mercado é um conjunto de investidores, de diversos tamanhos, do pequeno ao gigante, que pegam sua poupança e fazem diversos tipos de investimentos, seja no mercado de ações, em renda fixa, em títulos públicos ou privados. São pessoas que, de alguma forma, utilizam sua poupança para financiar empresas e o próprio governo”, explica o economista e educador financeiro Luís Artur Nogueira.
Segundo Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria, o mercado “existe desde o surgimento do homo sapiens” e não é uma invenção de uma elite perversa disposta a explorar os mais pobres. “O mercado financeiro é o local onde as trocas se realizam, como em qualquer mercado. Ao contrário do que muita gente parece crer, o mercado não é uma entidade, não tem uma organização formal, com estatuto, sede própria ou placa na parede. O mercado é um conjunto amplo de indivíduos”, afirma o ex-ministro.
O mercado somos nós
Ao associar o mercado a endinheirados e grandes investidores, o presidente petista, Gleisi e o PT ignoram os dados da Bolsa de Valores do Brasil, a B3, que registrou um aumento de quase 900% em contas abertas nos últimos 10 anos. Somente em 2022, de acordo com a B3, foram 5.847.163 contas de investimento em ações ou outros ativos, o maior número em uma década. Ele corresponde ao total de contas – cada pessoa física pode ter mais de uma, cadastradas em diferentes corretoras.
Ainda segundo a B3, a quantidade de investidores pessoa física com ativos em renda variável subiu 35% entre o 3º trimestre de 2021 e o mesmo período de 2022, de 3,3 milhões para 4,6 milhões. Entre o segundo e o terceiro trimestre do ano passado, houve um acréscimo de 200 mil investidores.
Já no Tesouro Direto – programa criado em 2002 que permite que pessoas físicas comprem e vendam títulos públicos pela internet, por meio de corretoras –, o total de investidores ativos até novembro do ano passado era de 2.109.570 pessoas, um acréscimo de 7.257 investidores em relação a outubro.
O número de investidores cadastrados no programa subiu 43% em relação a novembro de 2021, com a entrada de 448.136 pessoas, alcançando a marca de 22.048.922. As aplicações de até R$ 1 mil representaram 58,6% dos investimentos no período. O valor médio por operação foi de R$ 6.527,23.
Ao se observar a trajetória dos últimos quatro anos, é perceptível que a Bolsa brasileira se tornou mais ampla, diversificada e inclusiva. Em 2018, o número de contas de investidores pessoa física era de 814 mil. Em 2019, esse montante chegou a 1,6 milhão. Em 2020, bateu nos 3,2 milhões. Em 2021, foi superada a marca de 4,9 milhões, até chegar aos mais de 5,8 milhões registrados no fim de 2022.
“Existe uma microeconomia dentro do mercado que precisa ser compreendida. O mercado é composto por gestores de fundos, de escritórios de investimentos, bancos e corretoras, que administram o dinheiro de centenas de milhares de pequenos poupadores”, explica Benito Salomão, doutor em economia pelo PPGE-UFU. “Um funcionário do Banco do Brasil que vai se aposentar com recursos da Previ (fundo de pensão que gerencia a previdência complementar dos funcionários do Banco do Brasil) depende do desempenho desses fundos. Sua aposentadoria dependerá disso dentro de alguns anos. Os gestores desses fundos nada mais fazem além de alocar recursos de acordo com as informações que recebem.”
Segundo Luís Artur Nogueira, o mercado brasileiro era, de fato, mais restrito no passado, mas esse cenário mudou significativamente nas últimas duas décadas. “Temos uma diferença entre o mercado brasileiro e o mercado americano, que é o maior do mundo. Nos Estados Unidos, quando se fala em investimento em ações, é algo absolutamente comum. A maior parte da população faz esse tipo de investimento porque lá o investimento na Bolsa de Valores é visto como uma forma de você guardar dinheiro e proteger seu patrimônio pensando no futuro, na aposentadoria. Aqui no Brasil, durante décadas, o mercado financeiro era algo muito restrito à elite. De fato, era algo do topo da pirâmide. Mas, nos últimos 20 anos, isso mudou muito”, relata.
Maílson da Nóbrega refuta a tese difundida por Lula e afirma que ela resulta de um viés ideológico ainda muito presente entre os quadros do PT. “Quando você vê petistas criticando o mercado financeiro como se este fosse constituído por pessoas insensíveis e que se mancomunam contra o interesse público, em um acordo de elites ricas para prejudicar os pobres, tudo isso é uma mistura de desinformação e preconceito. O PT padece desse problema de origem, que é uma certa desconfiança com o lucro, com a atividade privada. Daí o apego às estatais”, diz.
Benito Salomão corrobora a visão do ex-ministro. “É de espantar essa retórica do presidente petista e da Gleisi Hoffmann. O petista é presidente da República. Quem tem de dar satisfação sobre as decisões que toma é ele, não o mercado. A obrigação de ser crível é dos formuladores de políticas públicas, não dos agentes privados”, esclarece o economista.
As oscilações do dólar e do Ibovespa, principal indicador do desempenho das ações negociadas na B3, indicam as reações dos investidores a eventuais riscos, explica Maílson. Não se trata de perseguição a presidente petista ou ao PT, já que o sobe e desce dos indicadores do mercado perpassa governos, da esquerda à direita.
“Quando o mercado fica nervoso, a Bolsa cai e o dólar sobe, é porque o mercado está reagindo a um determinado risco. E o principal risco que os mercados monitoram, em relação aos governos, é a questão fiscal. Da questão fiscal depende a estabilidade macroeconômica. E da estabilidade macroeconômica depende a existência de um mercado robusto, próspero e gerador de oportunidades.”
Fonte - Metrópoles