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CONTRA PRINCÍPIOS - Aborto legal e transexualização não podem ser tabus no SUS, diz novo secretário

O secretário ainda propõe parceria com escolas e o diálogo com instituições religiosas para reforçar a campanha de vacinação

Foto: Reprodução

Novo secretário nacional de Atenção Primária à Saúde, o médico Nésio Fernandes, 40, afirma que o Ministério da Saúde precisa retomar a “agenda civilizatória” e descentralizar no SUS (Sistema Único de Saúde) os serviços de aborto legal e o processo de transexualização, temas combatidos pela militância bolsonarista.

“A lei já diz que qualquer maternidade pode fazer aborto legal. Não é um procedimento alheio ao cotidiano delas. Mas quem vai puxar esse assunto, a sociedade civil? Não tem poder normativo, não tem poder indutor, de financiamento. Quem tem isso é o Estado”, disse Fernandes em entrevista à reportagem.

Para ele, o processo de transexualização pode ser ampliado. Desde 2008, o SUS oferece acesso a hormônios e cirurgias de modificação corporal e genital para mulheres trans e, a partir de 2013, também para homens trans e travestis.

Ele também afirma que estrangeiros podem voltar ao programa Mais Médicos, especialmente em cidades distantes, mas sem o acordo de cooperação que foi realizado com Cuba anteriormente. O plano é ocupar vagas abrindo editais para quem se formou no país, ou estudou no exterior e fez o Revalida (que dá aval a diplomas de médicos que se formaram no exterior e querem atuar no Brasil).

O secretário ainda propõe parceria com escolas e o diálogo com instituições religiosas para reforçar a campanha de vacinação.

Em 2020, Fernandes participou de uma empreitada para enviar uma criança de dez anos, grávida após estupro, a Pernambuco para realizar um aborto legal -situação que gerou protestos de extremistas e a atuação da ex-ministra Damares Alves.

PERGUNTA – Qual a mudança na atenção básica que deve se perceber em relação ao governo Bolsonaro?

NÉSIO FERNANDES – O ambiente que a gente quer construir aqui dentro é aquele que caracteriza o SUS. Essas agendas civilizatórias, discutir aborto, violência de gênero, saúde sexual reprodutiva, determinantes sociais de saúde envolvendo a questão de raça e cor, populações vulneráveis. São sempre assuntos que ganham no SUS grande protagonismo e profundidade primeiro. Você pega o HIV, a pauta LGBTQIA+, a gente precisa recuperar isso rapidamente.

Todas essas agendas avançadas precisam ter na Saps [Secretaria de Atenção Primária à Saúde] um ambiente de liberdade de pensamento, de crítica, de elaboração e de proposição de políticas públicas, porque não nos serve nada um Ministério da Saúde ou secretarias que só publicam nota técnica.

P – De que forma o governo pode retomar as “agendas civilizatórias”?

NS – É preciso organizar uma rede que desde a captação da atenção básica permita, na suspeita da violência, que o agente comunitário de saúde, o médico, o enfermeiro, todo mundo reconheça a situação, para evitar que chegue ao estupro. Se tem um estupro, tirar aquela criança da situação.

Aí tem que ter integração com Sistema Único de Assistência Social, conselho tutelar, uma relação direta com o Ministério Público de cada região. Se aquela criança vítima de estupro acaba desenvolvendo uma gestação, ela tem de ser diagnosticada rápido para acessar, com o menor risco, o aborto legal.

Precisa ter uma rede materna que faça aborto, descentralizada. Eu tive que levar uma menina de dez anos do Espírito Santo para Pernambuco. Combinei com todo mundo um silêncio, o segredo, até concluir o procedimento.

Por questão de religiosidade de agentes comunitários da saúde, médicos, enfermeiros, [eles] acolhem a criança gestante como mãe. ‘Oi, mãezinha, ouve o coração [do bebê].’ Eles naturalizam a violência naquele sofrimento, impedem que aquela criança possa inclusive ser estimulada a exercer sua autonomia, a sua decisão. E não repara a vítima do ponto de vista do sofrimento psicológico.

Então você precisa de NASFs (núcleos de apoio à saúde da família) com psicólogo, com assistente social em toda atenção básica.

A lei já diz que qualquer maternidade pode fazer aborto legal. Não é um procedimento alheio ao cotidiano delas. Mas quem vai puxar esse assunto, a sociedade civil? Não tem poder normativo, não tem poder indutor, de financiamento. Quem tem isso é o Estado. Compete ao Ministério da Saúde fazer uma coerção de toda a cadeia do poder público, do poder público estadual, municipal, dos prestadores privados contratados, para prestar serviço e garantir dignidade, acesso.

P – Vão desenhar uma política pública específica sobre o aborto legal? Os profissionais vão ser orientados a, se chegar uma mulher com caso declarado ou que pareça de gravidez por estupro, não tratar como “mãezinha”, mas como vítima?

NS – Sem dúvida nenhuma. Você precisa estabelecer políticas desde normas a financiamento, monitoramento, avaliação. Senão não é política, é uma nota de intenções, protocolo, é um desejo a partir de uma inspiração academicista. Política pública tem que ter tudo.

Não estou dizendo que eu vou fazer mês que vem. É algo no âmbito daquele debate de discutir temas que nesse período recente eram tutelados. A gente precisa preservar a instituição Ministério da Saúde, para ela liderar, com posições avançadas, toda e qualquer discussão complexa.

P – Então, de forma geral, o Ministério da Saúde não pode negar debates como de aborto legal…

NS – …processo de transexualização da população.

P – Para o processo de transexualização, algum procedimento ou estrutura nova no SUS precisa ser criado?

NS – Nós já temos alguns serviços no Brasil, então eles podem ser potencializados, outros precisam ser criados, temos estados que não têm nenhum serviço, nem mesmo o serviço ambulatorial.

P – É uma ideia do governo descentralizar esse tipo de serviço?

NS – Claro, até porque não é tão grande a população trans. Quanto que essas pessoas sofrem, quanto que elas podem se ressignificar, ter outra qualidade de vida se puderem passar por um processo transexualizador, desde o tratamento psicológico, apoio psiquiátrico, medicamentoso, até procedimento cirúrgico, se tiverem acesso ao direito civil de poder modificar o nome. Não tem como todos os estados não terem um serviço desse implementado e consolidado.

P – Como esse tipo de assunto avança sob um Congresso conservador?

NS – Você não precisa dele. Isso já é discricionário do poder público, já pode hoje abrir [o serviço], tem recurso do Ministério da Saúde, tem as vias de financiamentos. Você não precisa do Congresso para isso. Isso está pacificado. Estou só discutindo aborto legal, o aborto já pacificado.

P – Qual a proposta sobre a vacinação?

NS – Não é suficiente hoje somente a campanha de audiovisual, só a campanha de mobilização. Você precisa ter uma mobilização com as escolas. Quanto mais avança a idade, menor a cobertura vacinal. Especialmente a partir de três e quatro anos de idade, as coberturas são mais baixas. Onde as crianças de 3, 4 anos estão? Nas escolas. Ou a gente mobiliza a educação nessa agenda ou a gente não consegue fazer essa campanha.

P – Lula falou em diálogo com as igrejas pela vacinação.

NS – Eu sou batista, meu diálogo com os crentes é muito bom. No Espírito Santo, a gente conseguiu colocar os bispos pentecostais, da Assembleia de Deus, rabino, padre, todo mundo vacinando no mesmo dia. Não é todo mundo que é negacionista, bolsonarista, tem uma galera boa aí. Essa turma dá para conversar. Eu acho que a vacinação é uma agenda para ajudar a retomar o diálogo com a religião.

P – Os médicos estrangeiros, incluindo cubanos, podem reforçar o Mais Médicos?

NS – Quando abrir o edital para estrangeiros não revalidados, eles podem se inscrever. A primeira etapa será aos profissionais com registros no Brasil, brasileiros ou estrangeiros. Segunda é de brasileiros formados no exterior, e a terceira para o estrangeiro [sem diploma validado].

Enquanto existir o Brasil profundo, a periferia, e a gente não mudar muito o conteúdo de valores, de formação, de perfil, de classe da medicina, vamos precisar durante décadas recrutar médicos de maneira compulsória, e uma das melhores formas é o registro temporário.

P – Qual é a proposta para acomodar os programas Mais Médicos e Médicos Pelo Brasil?

NS – O caminho é a unificação dos programas. Ambos serão parte de uma estratégia única. Você tem uma carência de médicos, mas você tem carência também de outros profissionais. Você não consegue colocar o psicólogo no interior do interior do interior [do Brasil]. Está faltando fonoaudiólogo em grandes centros. Está faltando tudo.

P – Qual deve ser o futuro da ADAPS [Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, criada no governo Bolsonaro para administrar o Médicos Pelo Brasil]?

NS – A agência caminha para sofrer um processo de reformulação e aprimoramento em que outras competências e responsabilidades podem ser incorporadas. É um tema que ainda vai levar meses para amadurecer. Pode ainda ser um instrumento para implantar a telemedicina. Ou ela pode ser uma experiência que consolide outros marcos de contratação no poder público.

P – Uma parcela grande da verba da atenção básica é direcionada por emendas parlamentares a fundos municipais, sem seguir critérios de prioridade regional.

NS – As emendas são decididas em dezembro. Aquelas que a gente vai executar [em 2023] já passaram. O desafio é conseguir montar uma carteira boa [de ações para as emendas], fazer um debate maduro e republicano com o Congresso, para qualificar a aplicação no próximo ano. A gente não vai acabar com a emenda parlamentar, isso é um fenômeno objetivo, isso é parte da cultura política brasileira, muito difícil.

RAIO-X

NÉSIO FERNANDES, 40

Evangélico, membro do PCdoB e médico formado em Cuba, foi secretário de Saúde do Espírito Santo, de 2019 a 2022, e presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).

Fonte - Jornal de Brasília

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