Homem foi mantido preso em condições insalubres por mais de um ano, sem acesso a higiene, água ou alimentação adequada
Um homem cadeirante, de 33 anos, denuncia uma série de maus-tratos que sofreu durante o período em que esteve detido no Paraná. Por dois meses, Daniel* foi submetido a condições insalubres sem atendimento médico adequado no Complexo Médico Penal (CMP). Foi comido vivo por bactérias. Passou fome e sede. Ficou dias em meio a fezes e urina, sem ser cuidado. Desenvolveu uma infecção grave que o deixou próximo à morte. As imagens são assustadoras.
As situações humilhantes fizeram com que a vítima entrasse com uma ação no Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), cujo teor do processo foi obtido com exclusividade pelo Metrópoles. Daniel pede R$ 243,3 mil em razão de danos morais, estéticos e materias que alega ter sofrido.
Cadeirante denuncia tortura em presídio no PR: "Comido por bactérias" - Material cedido ao Metrópoles
“Esta pessoa, este ser humano, passou fome, sede, dias em meio a suas necessidades, sofreu a humilhação de ter que se arrastar pela cela em busca de ajuda, ajuda esta que era dada, de forma incapacitada, pelos próprios companheiros”, detalham os advogados Jefferson Silva e Rafael Boaretto Höschele, que representam a vítima, na petição inicial.
No documento, eles contam que Daniel “sentiu seu corpo ser comido de dentro para fora, viu seu corpo se degenerar, com o passar dos dias, semanas, meses”. Também apontam que o preso passou noites em claro e deixou de tomar remédios que não eram administrados.
“O sentimento de queimação e dor a cada momento que urinava, uma infecção que alcançava suas partes íntimas, o medo de perdê-las. Sonda não trocada, anemia que o enfraquecia, vida que se esvaía. Desespero, terror, impactos psicológicos que sente até o dia de hoje, cicatrizes que para sempre o lembrarão dos dias de tortura suportados no Complexo Médico Penal do Paraná”, acrescentam os advogados.
A prisão
Daniel envolveu-se em um roubo em outubro de 2016. Durante o crime, ele acabou atingido por uma bala em meio a um tiroteio, que o deixou paraplégico. O homem foi hospitalizado e encaminhado ao sistema prisional do estado.
Por conta da condição de saúde, que demanda acompanhamento, ele teve que ser encaminhado ao Complexo Médico Penal do Paraná (o mesmo que receberia o policial penal federal Jorge Guaranho, acusado de matar o petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu), onde denuncia ter sido vítima de vários tipos de abuso.
Com sequelas físicas e mentais, a vítima ainda convive com as cicatrizes e feridas abertas dos dias de horror que viveu dentro da cela.
Dentro do complexo penitenciário, Daniel chegou a ficar quatro dias entre as próprias fezes e urina. Por conta das restrições impostas pela deficiência, ele precisava de ajuda para necessidades básicas e chegou a usar fraldas. Além disso, desenvolveu anemia e teve infecções urinárias por conta das sondas.
Devido às péssimas condições de higiene, uma bactéria surgiu na região íntima e avançou para outras regiões do corpo, como costas, braços e pernas. Por conta do risco de contágio, ele precisou ser isolado de outros presos.
A prisão de Daniel foi convertida para domiciliar em fevereiro de 2017 – dois meses e sete dias após dar entrada no Complexo Médico Penal. Ele ainda ficou internado por 17 dias, lutou pela vida, e conseguiu, em grande parte, segundo a defesa, curar as infeções, feridas e anemia.
Restaram, contudo, as sequelas da tortura pelo qual foi submetido no sistema prisional estadual.
“Diante do exposto, a parte autora requer indenização, pelos danos morais sofridos, pela humilhação, pelo terror passado, pelo destrato, pela tortura física e psicológica, pelos danos materiais suportados, pelos danos estéticos permanentes”, assinalam os advogados.
Procurado pela reportagem, o governo do Paraná não respondeu até a publicação. O espaço segue aberto.
Sistema prisional
Recentemente, o mesmo complexo penitenciário alegou não ter condições de receber o policial penal Jorge Guaranho, que responde pelo assassinato do tesoureiro do PT Marcelo Arruda. A defesa dele argumentou à Justiça que o réu não consegue executar atividades básicas sem auxílio de outras pessoas.
Sendo assim, o local não teria a estrutura necessária para recebê-lo. O tribunal paranaense acatou o pedido. O mesmo pedido foi feito pela defesa de Daniel, que teve a solicitação negada inicialmente.
“Ele apresentou uma infecção muito agressiva, e foi solicitado várias vezes para que ele fosse transferido para prisão domiciliar. Além das necessidades de atendimento por conta da deficiência, ele precisou de medicamentos para tratar as bactérias”, diz o advogado Jefferson Silva.
Os sinais do período “análogo à tortura” permanecem. Por conta das feridas, ainda abertas, ele se sente constrangido em sair de casa, precisa fazer uso contínuo de medicação para controlar as dores e não consegue “levar uma vida normal”, de acordo com os advogados. A vítima pede R$ 243.324 em razão de danos morais, estéticos e materiais.
“O objetivo é tentar reparar, de alguma forma, os danos morais sofridos, a humilhação, o terror passado, o destrato, a tortura física e psicológica, os danos materiais suportados e os os danos estéticos permanentes”, diz a ação enviada à Justiça contra o estado do Paraná.
Descaso
Ao Metrópoles, a advogada Priscila Caneparo, especialista em direitos humanos, afirma que as situações degradantes têm se tornado cada vez mais comuns nas prisões do país. Principalmente com o aumento da população carcerária e por causa da pandemia.
“O confinamento é angustiante e dificulta a ressassocialazação. O acesso a recursos de saúde é insatisfatório, além de más condições de higiene e celas mal ventiladas, o que aumenta a probabilidade de infecções e doenças contagiosas”, afirma Caneparo, que também é professora da Universidade Católica de Brasília (UCB).
“Os direitos humanos não existem para garantir que o preso não cumpra a pena, mas para que ele tenha o devido processo legal. O preso deve ser tratado com dignidade mesmo que tenha cometido o crime mais grave”, acrescenta a especialista.
* Para preservar a identidade da vítima, foi adotado um nome fictício na reportagem.
Fonte - Metrópoles