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'Mortes em série': prisão para detentos LGBTQIA+ é parcialmente interditada em MG após crise humanitária

Péssimas instalações, abandono familiar e problemas psicológicos estão por trás de tragédia em unidade prisional de MG, onde, em um ano e meio, 13 presos se mataram e mais de 60 tentaram tirar a própria vida

Detento em presídio LGBT mostra caixa com comprimidos acumulados: remédios são usados para suicídio — Foto: Paulo César de Azevedo Almeida

As dramáticas condições de presos de uma unidade prisional voltada unicamente à população LGBTQIAP+ levaram à interdição parcial da Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, em São Joaquim das Bicas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). A decisão foi da juíza Bárbara Isadora Santos Sebe Nardy, da Vara de Execuções Penais de Igarapé, município do estado. Da falta de condições mínimas de atendimento a problemas psicológicos e de abandono familiar, os detentos enfrentavam uma série de problemas que tiveram como resultado 13 suicídios em um ano e meio e pelo menos 60 tentativas.

As queixas que vêm sendo apresentadas por defensores públicos desde que a unidade passou a receber exclusivamente detentos LGBTQIAP+, no ano passado, envolvem falta de médicos, psicólogos, agentes penitenciários capacitados para lidar com essas pessoas, além de falta de controle no acesso a medicamentos. Os remédios são entregues aos detentos, que os usam de forma indiscriminada. A própria magistrada foi pessoalmente até a penitenciária para constatar os problemas enfrentados pela população carcerária formada por um grupo de vulneráveis de cerca de 400 pessoas.

Em sua decisão, publicada na semana passada, a juíza Bárbara Isadora cita os suicídios, ressalta um caso ocorrido no dia anterior à assinatura do ofício e, sobretudo, destaca também o que chamou de "penalização" dos presos que, por se declararem gays, são transferidos de suas cidades de origem para a unidade. A distância de parentes e amigos, somada à falta de assistência, teria contribuído para o desastre humanitário durante o cumprimento da pena.

A portaria assinada pela juíza determina que, durante 365 dias, a penitenciária não poderá receber presos de outros lugares de MG além da Região Metropolitana. Além disso, presos que já estão na unidade, mas que residem em outras áreas do estado, deverão ser "devolvidos" a presídios em suas regiões de origem num prazo de 90 dias, numa tentativa de garantir que essas pessoas voltem para perto das famílias.

'Hipervulnerabilidade'

O defensor público de Minas Gerais Paulo César de Azevedo Almeida, que acompanha a situação do presídio desde o ano passado e já fez reiteradas visitas ao local, acrescenta que o problema é ainda mais grave. Segundo ele, esses detentos, muitas vezes abandonados pelas famílias e abalados psicologicamente, estão em "hipervulnerabilidade" e não dispõem de itens básicos de higiene, por exemplo, e sofrem humilhações constantes. Há relatos de ofensas homofóbicas feitas pelos próprios agentes penitenciários, que deveriam manter a ordem. De acordo com as inspeções feitas pelo defensor, o presídio não funcionava com a presença de médicos, dentistas ou psicólogos e, além disso, sequer havia um controle sobre a entrega e consumo de medicamentos, o que contribuiu para alto número de suicídios.

— No ano passado nós nos deparamos com esses suicídios em série e ajuizamos uma Ação Civil Pública contra o estado, onde pedimos uma indenização em caráter coletivo em razão dessas mortes, porque pelo que apuramos, o estado estava sendo negligente na prestação de serviços básicos de saúde mental em desfavor desta população LGBT — conta Paulo César.

 — São pessoas que já são vulneráveis por conta do contexto de LGBTfobia e de marginalização na sociedade e, no sistema prisional, elas continuam sofrendo tanto por parte de outros detentos quanto por parte de agentes penitenciários. As denúncias mostram que eles não respeitam o nome social, chamam travestis e mulheres trans pelo nome masculino.

Problemas: em foto do ano passado, preso mostra medicamento para tratamento de Covid-19 vencido entregue aos detentos — Foto: DP-MG


Preso engoliu 54 comprimidos

Quando a Ação Civil foi movida, os defensores contabilizavam cinco mortes por suicídio num curto período. Agora, enquanto ainda não há uma decisão da Justiça de MG quanto a uma indenização e, também, sobre adaptações a serem feitas na rotina do presídio, o número já quase triplicou. Um dos casos que mais chocou o defensor foi o de um detento que conseguiu acumular mais de 50 comprimidos e não resistiu após uma overdose.

— É preciso capacitação dos profissionais do presídio e, também, protocolos de prevenção ao suicídio. A ministração de medicamentos precisa ser feita diretamente ao preso, controlada. Também tem que haver controle sobre itens que podem ser usados para automutilação e enforcamento – acrescenta. – Na unidade, como não tinham uma equipe de saúde eficiente, eles entregavam o medicamento diretamente para o preso e, como não havia administração daquele medicamento, tinha preso que era encontrado com mais de 40 comprimidos acumulados numa caixinha. Em um dos casos de suicídio, um detento morreu após ingerir 54 comprimidos. Os colegas de cela advertiram os agentes, mas nada foi feito e ele foi encontrado morto na manhã seguinte.

'Corpos foram se acumulando'

São casos em que, de acordo com o defensor público, houve omissão do estado sobre as condições psicológicas daquelas pessoas. Em alguns deles, detentos, após crises psicóticas ou tentativas de suicídio, eram levados a um hospital público da região, onde médicos emitiam laudo orientando para que eles tivessem a rotina controlada e que não recebessem itens que pudessem colocar sua vida em risco.

– Além dos remédios, vários presos também se suicidaram com o que eles chamam de "teresa", que é basicamente um nó no lençol. Eram pessoas que estavam em crise, tinham tendências suicidas e, quando eram atendidas, a médica emitia um relatório orientando a unidade a não entregar medicamento e observar o consumo imediato, além de não entregar gilete, lençol ou materiais arriscados. Mas eles continuaram tendo acesso. Apesar das advertências que foram feitas à unidade de que ela precisava de um atendimento qualificado e capacitado, providências não foram tomadas e os corpos foram se acumulando.

Apesar de não sofrer com superlotação, a penitenciária, segundo Paulo César, ainda possui uma quantidade insuficiente de agentes penitenciários, e há problemas estruturais graves.

– Em uma das muitas visitas que fizemos, uma cela estava completamente alagada e gotejando. As pessoas estavam presas dentro dessa cela alagada. A penitenciária vinha funcionando com uma deficiência estrutural e de equipe. O número de policiais penais era insuficiente, desproporcional. Houva uma recente visita da Ouvidoria do Departamento Penitenciário do estado (Depen-MG) para averiguar essas violações – diz. – A ocupação excessiva não era o problema. O problema é que o Estado de MG, quando criou essa política de criar presídios para a população LGBT, fez a promessa de que reservaria em cada uma das 19 Regiões Integradas de Segurança Pública (Risp), mas isso nunca foi implementado na prática. Todos os presos de MG que se auto-declaravam LGBTs passaram a ser trazidos para a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Pessoas com laços familiares no Norte, Leste, Oeste ficavam fragilizadas e distanciadas. Quem já tinha dificuldade de receber assistência de parentes viu sua situação piorar.

A implementação das alas dedicadas a presos LGBTs é prevista por uma resolução do ano passado publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e segue, também, uma tendência mundial. O assunto divide opiniões, já que acaba por segregar ainda mais estes grupos. A ideia, no entanto, é preservar a segurança dos presos. Também é permitido que eles escolham se querem ir para um presídio com alas exclusivas ou para uma penitenciária comum, mas este direito é pouco explorado nesses casos por desconhecimento.

– Essa política vem sendo adotada pelo Estado. Estudos da ONU (Organização das Nações Unidas) evidenciam que pessoas LGBT no convívio geral com outros presos são alvo de violência física, psicológica ou são estupradas. Então, a ideia é colocá-las numa ala ou unidade prisional específica para evitar que sejam subjugadas ou sofram tortura – explica o defensor público. – Existe, sim, a crítica feita em relação à ideia de que este modelo cria uma marginalização ainda maior, que é o que a sociedade quer combater. Mas infelizmente o Estado não tem vias de garantir que uma pessoa LGBT, incluída no convívio geral (de um presídio), esteja segura. O histórico mostra o contrário: há opressão, sobretudo contra travestis.

Estado diz que mortes são investigadas

O GLOBO questionou o Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG) sobre a decisão da Justiça e, também, sobre as críticas feitas pela Defensoria Pública. Em nota, a pasta afirmou que recebeu a notificação judicial sobre a interdição parcial da Penitenciária de São Joaquim de Bicas I ( Professor Jason Soares Albergaria), na última quarta-feira, e acrescentou que cumprirá as determinações da Justiça.

"Ressaltamos que em todos os casos de óbito registrados na unidade prisional, foram instaurados procedimentos administrativos de apuração interna; as investigações criminais são de responsabilidade da Polícia Civil", segue o comunicado.

O departamento afirma, também, que investiu mais de R$ 1 milhão em melhoras na infraestrutura da unidade e, ao contrário do que relatou o defensor público, diz que há equipe médica completa na penitenciária, além de assistentes sociais e pedagogos.

"A unidade já conta com uma equipe multidisciplinar, que foi reforçada com novas contratações no mês de maio. Ela é compota por psicólogos, médicos psiquiatras e clínicos, terapeuta ocupacional, analistas jurídicos, assistentes sociais e pedagogos, por exemplo, para o acompanhamento de detentos nas diversas áreas. No mês de junho, sem contabilizar os atendimentos pedagógicos, a equipe realizou 1.200 atendimentos na unidade que atualmente possui 400 detentos. O local opera abaixo de sua capacidade, sem superlotação. Mais de R$1,2 milhão foram investidos na infraestrutura da unidade nos últimos dois anos".
O órgão estadual concluiu o comunicado reforçando que trata o tema com seriedade. "Vale ressaltar, ainda, que uma resolução da secretaria, publicada em 2021, estabelece detalhadamente as diretrizes da custódia e rotina com os presos autodeclarados LGBTQIA+. Tal documento reforça a seriedade com o qual o tema é tratado pela Sejusp na busca do atendimento desse público segundo normas e legislações vigentes".

Por Arthur Leal — Rio de Janeiro

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