Jéssica Antunes
jessica.antunes@jornaldebrasilia.com.br
jessica.antunes@jornaldebrasilia.com.br
Uma jovem de camisa branca com manchas de terra, cabelos bagunçados e pés descalços anda pelo estacionamento do Setor de Diversões Norte olhando para o chão. Com uma manta protegendo a cabeça da chuva, parece procurar algo. Pega duas latas de refrigerante partidas ao meio que estavam jogadas na rua e, com as mãos, busca restos da droga que a mantém refém: o crack. Ela não é a única. A Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack, feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), revela que as mulheres são 20% dos que frequentam as cracolândias no País - entre 18 e 24 anos, elas são 37,41% dos consumidores.
A poucos metros dos centros do poder, a cena é comum. No Setor Comercial Sul, o mundo das drogas tem endereço: o subsolo. Nas galerias, os viciados se juntam para usar mais um pouco da substância que causa alta dependência. Entre elas, o arrependimento é claro, mas a compulsão é ainda maior.
“Eu deixei uma coisa tão pequena, insignificante e fútil como essa droga tomar conta da minha vida. O crack me tirou tudo”, reconhece Marcela (nome fictício), 36 anos. Ela tem pai, mãe, filhos, casa para morar e uma carreira. Se formou em gastronomia, mas há cinco anos vive pelas ruas. A pesquisa revela que, como ela, 2,35% de todos os usuários do Brasil conseguiram concluir a graduação antes de se render à droga.
Efeito diferente
Especialistas afirmam que o organismo feminino é mais vulnerável à ação das drogas e isso explicaria porque as mulheres integram os índices de dependência. “Existem pouquíssimos estudos sobre o envolvimento de mulheres com álcool e drogas justamente porque elas representariam uma camada menor dos usuários. São sempre em torno de 20%, mas a tendência é de igualar os gêneros”, alerta a médica psiquiatra e especialista em dependência química Helena Moura.
“Nelas, o efeito das drogas é diferente”, explica. Os hormônios femininos podem estar envolvidos nesta maior sensibilidade - a conexão dos entorpecentes com o cérebro é mais rápida. “Elas precisam de menos quantidade e tempo de uso para desenvolverem a dependência”, assegura.
Leonardo Moreira, assessor de políticas sobre drogas da Secretaria de Justiça (Sejus) e presidente do Conselho de Políticas Sobre Drogas do DF, entende que está mais claro que existem diversas vulnerabilidades para as pessoas usarem drogas. “As mulheres estão incluídas por diversos fatores, sejam sociais, de violência ou de abandono”, diz.
Para Moura, um quadro pós- traumático pode causar predisposição para o uso de entorpecentes. Nisso estão incluídas questões como abandono, abuso sexual, desejo de permissividade ou independência.
Marcas no corpo e na alma
Nos dedos, manchas escuras e queimaduras de tanto acender cachimbos de crack. No rosto, braços e pernas, cicatrizes. Marcela se emociona ao lembrar da trajetória de vida. Aos 15 anos, não imaginava que entrar no mundo das drogas a faria tão mal. “Meu primeiro marido usava drogas e, apesar de nunca ter me oferecido, achava que ficaria mais próxima se também usasse. Depois, um outro companheiro me apresentou ao crack”, conta.
“As pessoas me conhecem como Maninha. Tenho 23 anos, mas sou assim por causa da droga”, diz outra jovem que vive do vício em uma galeria no =no Plano Piloto. Ela se justifica pela aparência castigada, com rugas, manchas e cicatrizes.
Casos parecidos
A trajetória das duas lembra a da ex-modelo Loemy Marques, de 25 anos, que saiu do Mato Grosso para tentar a carreira em São Paulo e acabou encurralada no mundo das drogas. Loira, magra, com olhos verdes e 1,79 metro de altura, a beleza deu lugar aos efeitos dos anos de uso da droga – há dois anos, ela vive na cracolândia de São Paulo.
Outro fator que evidencia a semelhança entre as três é a lucidez quando não estão sob efeito das drogas. Elas se mostram conscientes do estado em que estão. “Estou tomando raiva do crack e quero parar. Essa droga mata e as pessoas matam por ela”, analisa Maninha.
Policiamento
No Setor Comercial Sul, quatro mulheres integram a equipe da Polícia Militar que faz ronda no local. “O crack é uma droga devastadora. Em três meses e meio, já vi de tudo”, diz uma das militares, que preferiu não se identificar. Ela conhece as usuárias pelo nome e é bem tratada pelas reféns da droga.
“Nossa função é impedir que o crack chegue, porque isso contribui com uma série de problemas que envolvem a segurança pública. O que essas pessoas precisam é de intervenção social do Estado”, relata.
Tratamento diferenciado
Segundo o assessor de políticas sobre drogas da Secretaria de Justiça (Sejus), Leonardo Moreira, há um processo de mudança no tratamento. “Uma das coisas que temos visto é o consultório na rua, que vai ao encontro dessas pessoas”, avalia. Para as mulheres, o olhar é diferenciado: “Aquelas que estão grávidas precisam de um tratamento tanto a elas quanto aos filhos, que recebem as drogas durante a gravidez”.
Esta seria uma das situações que podem motivar uma mudança. Foi assim com Juliana (nome fictício). Aos 30 anos de idade, ela passa pela nona internação após viver por seis anos nas ruas, onde gerou seu segundo filho.
“Eu fazia o possível para usar menos e não prejudicar tanto o bebê. Sabia que eu era a única pessoa que poderia fazer algo pela criança e não conseguia. Isso me tirava o chão, me enlouquecia. Foi um dos fins do poço”, relembra.
Milagre
“O nascimento dele com saúde foi um milagre. Não teve clínica, promessa, ameaça, espancamento ou desprezo que conseguissem me fazer sair, mas aquilo me resgatou”, lembra Juliana. Ela ainda passou por recaídas e, hoje, sóbria, diz que perdeu anos sem perceber, mas está confiante de que seja a última tentativa.
Ela se formou aos 23 anos em Direito em uma faculdade particular e deixou a casa dos pais, no Plano Piloto, três anos mais tarde após se entregar ao crack por conflitos pessoais e familiares. “Comecei com maconha, mas o crack é terrível. Eu perdi tudo e vi, nele, a possibilidade de fuga”, conta.
Olhando para trás, ela vê tudo com mais clareza. “Não imaginei que tivesse alguma substância que fosse me roubar tudo”, afirma.
Usuárias são o dobro dos portadores de HIV
Para compor a Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack, feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mais de 32 mil pessoas foram entrevistadas. Entre as mulheres, 8,17% eram portadoras do HIV, mais que o dobro do índice masculino, que chegava a 4,01%. Isso pode ser justificado por outros dados: 55,36% afirmaram ter praticado sexo em troca de dinheiro para comprar a droga ou do próprio crack. Além disso, 40% delas sofreram violência sexual no último ano.
A usuária Marcela se encaixa nos dados. Ela diz que sofre violência física e psicológica “todo santo dia”. Por dívida, fofocas ou simplesmente por surto de usuários. “Para conseguir dinheiro e sustentar o vício, peço nas ruas, faço programa, vigio carro. Não roubo. Já roubei, mas hoje quero distância de prisão. Afinal, já estou presa aqui”, conta.
Na gravidez
Mãe de quatro filhos, Marcela relata que abusou drogas durante toda a gravidez, inclusive no dia do parto da filha caçula. “Agora vou ser avó”, diz, em prantos.
“Já tem mais de seis anos que não vejo meu filho mais velho. Tenho muita vergonha. Não estou convivendo nem comigo mesma, como vou conviver com os meus filhos?”, emenda.
Fonte: Da redação do Jornal de Brasília